Cada alma mortal está dividida em três partes, uma em forma de auriga e as outras duas em forma de cavalo bom e de cavalo maldoso. O cavalo bom tem um aspecto mais belo, é branco e de olhos negros, apaixonado pela glória com moderação, conduzido apenas pelo incitamento e pela palavra; o outro, o de carácter irrequieto, é torto, torpe, tosco, cor escura e olhos pálidos, companheiro da insolência e da vanglória. Por isso, quando o auriga, perante a visão do Amor, se enche das picadas do desejo, então o cavalo que lhe é dócil constrangido pelo pudor, abstém-se de se precipitar para o amado. O outro, porém, avança com ímpeto aos saltos e obriga o auriga e o cavalo bom a ir para junto do predilecto e a tentar seduzi-lo pelos prazeres de Afrodite.
Os dois, a princípio, resistem, irritados, mas por fim desistem e deixam-se conduzir e só quando vislumbram o rosto cintilante do amado mesmo na sua frente; só então é que o auriga se sente reconduzido até à Beleza Verdadeira. Essa visão enche-o de temor respeitoso que o faz recuar e cair de costas, tão fortemente que ambos os cavalos tombam sobre os quadris. Ora sempre que o cavalo insensato tenta repetir a proeza, o auriga castiga-o e recondu-lo para a visão divina do amado. A alma do amante segue agora, respeitadora e receosa, a alma do amado, que por estas razões é servido com toda a solicitude, como um deus, não por quem finge amar, mas por quem experimenta verdadeiramente esse sentimento.
Logo que o amado aceita escutar o que lhe diz o seu amante, a sua benevolência causa-lhe perturbação, ao aperceber-se de que todos os outros, amigos e familiares, não oferecem qualquer parcela de amizade em confronto com o amigo que é presa da possessão de um deus. E quando persevera nessa conduta e se avizinha dele para o tocar nos ginásios e em outros locais de reunião e sente o desejo a ser retribuído, o fluxo vindo da Beleza regressa de novo ao jovem belo através dos olhos que são a entrada natural para a alma.
Penetrando nela, impele o brotar de penas e da plumagem e enche de amor a alma do amado. Ele ama, mas não sabe o quê; não sabe mesmo que espécie de sentimento experimenta nem está em estado de o explicar; é como alguém que, tendo recebido de outro uma doença dos olhos, não é capaz de dizer a causa; não se dá conta de que se vê a si próprio no amante como em um espelho. A isto não chama amor, mas amizade. O seu mais vivo desejo é vê-lo, tocá-lo, beijá-lo, deitar-se a seu lado; e, como é natural, não tardará a fazê-lo.
Ora, se nesse momento prevalecerem as partes melhores do espírito que conduzem a um género de vida moderada e ao amor da sabedoria, subjugam o que faz nascer a maldade na alma e deixam em liberdade as forças pelas quais se gera a virtude; então, no fim da vida, recuperam as asas e a leveza, e triunfaram num combate verdadeiramente olímpico. Tais são, ó jovem, os bens grandes e divinos que te concede a amizade de um amante.
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Le Char d'Apollon, de Odilon Redon |